24 de agosto de 2009

DIREITO E JUSTIÇA

O que é Justiça?

(Reflexões e resumo didático para a disciplina de Sociologia Jurídica)

Tida por alguns como objetivo principal do Direito, ou sendo mesmo muitas vezes com ele confundido, o sentido de Justiça não é algo pacificado. Pode-se encontrar - como acontece com uma grande quantidade de idéias de caráter abstrato - concepções que variem de local para local e de época a época. Contudo, não seria arriscado imaginar que uma análise histórica pudesse oferecer subsídios para a formação de uma definição que indique ao menos a presença de certos valores comumente relacionados ao tema ao longo do tempo.

JUSTIÇA = RETRIBUIÇÃO

É de se imaginar, por exemplo, com certo grau de segurança, que a primeira noção de Justiça tivesse relação com as mais primárias manifestações dos desejos de vingança. Daí vem inclusive a expressão “fazer justiça com as próprias mãos”. Dessa forma, tem-se que as primitivas noções de justiça teriam sido norteadas pelo sentimento de RETRIBUIÇÃO. O desejo de retribuir comportamentos (para o bem ou para o mal) era parte do comportamento do homem primitivo, sendo em parte provavelmente alimentado pelos sangrentos conflitos vividos pelo homem no estado da natureza, o que fez com que a civilização percebesse, já então em seu nascimento (pois como diriam alguns, “ubi societas ibi jus” – “onde há sociedade há o direito”), o quanto era necessário estabelecer regras a respeito desse comportamento potencialmente desagregador.

JUSTIÇA = COMPENSAÇÃO/RETRIBUIÇÃO DEVIDA + HARMONIA

As instituições jurídicas primitivas baseavam-se na negociação, nos acordos e nos compromissos feitos oralmente entre as partes litigantes, em obediência a preceitos e valores da vida cotidiana de todos. O objetivo era evitar que as desavenças se alastrassem por todos os membros da comunidade, ou pior, que a morte de uma pessoa fosse vingada pela morte de outra pertencente à família do assassino e que, dentro da tribo, isso degenerasse na luta homicida de todos contra todos.
Podia-se contar com árbitros e juízes, escolhidos entre aqueles que eram considerados os mais sábios, normalmente os anciãos, ou mesmo mediante algum motivo de crença religiosa.
Em um segundo momento, quando da evolução das relações sociais, em especial com o advento da propriedade privada, passa a surgir, em complementação ao desejo de RETRIBUIÇÃO, o desejo de COMPENSAÇÃO, no sentido do dever de ressarcir prejuízos porventura causados.
Dessa forma, era a idéia de RETRIBUIÇÃO/COMPENSAÇÃO que impulsionava as primeiras buscas por Justiça, associado ao valor HARMONIA, que buscava então, dessa forma, restabelecer o equilíbrio e pacificar as relações da comunidade.
A cultura ocidental, por sua vez, tem na Bíblia a mais antiga fonte a respeito das noções de Justiça. E lá também podemos identificar claramente como princípio de justiça a RETRIBUIÇÃO, mas aí já como uma noção de RETRIBUIÇÃO “devida” (ou conforme a lei do talião: “olho por olho dente por dente” – o que quer dizer: nem mais, nem menos que o devido). Apesar de o discurso dos Evangelhos parecer mais tolerante no sentido de devermos evitar a busca por retribuições aos nossos devedores e inimigos (“ama o teu inimigo”!), incentivando dessa forma o perdão e incluindo um elemento mais pacificador (HARMONIA e um embrião do que viria a ser tratado como DIGNIDADE), o princípio da RETRIBUIÇÃO retorna com força nos textos relativos ao Juízo Final, com a punição dos “ímpios” e a premiação dos “justos”. Dessa forma, a idéia de RETRIBUÇÃO DEVIDA faz com que se tenha a noção de que ao mal causado corresponda uma penalidade equivalente.

JUSTIÇA = COMPENSAÇÃO/RETRIBUIÇÃO DEVIDA + HARMONIA + BEM COMUM + SABEDORIA/EQUIDADE

Com a noção de um mundo dividido entre o bem e o mal (sob influência do Judaísmo e do Zoroastrismo) a idéia de Justiça acaba por associar-se à idéia de BEM (ou seja, o “bem” que deve prevalecer sobre o “mal”, ou como o “certo” que deve prevalecer sobre o “errado”).
Na Grécia Antiga, a idéia de bem tem os contornos de BEM COMUM (certamente influenciado também pela busca da HARMONIA). Pregava-se o governo da sabedoria, aplicando-se o Direito por meio da EQUIDADE (a possibilidade de o Juiz aplicar a lei segundo sua melhor consciência e sabedoria, para não correr o risco de, ao aplicar a lei cegamente, cometer injustiças). A corrupção dos magistrados, no entanto, aliado ao declínio moral e material da civilização grega no final do período clássico, fez-se dar maior ênfase ao direito positivado, como uma forma de limitar o poder dos magistrados.

JUSTIÇA = COMPENSAÇÃO/RETRIBUIÇÃO DEVIDA + HARMONIA + BEM COMUM + SABEDORIA/EQUIDADE + ISONOMIA

Pela cultura greco-romana tivemos ainda o acréscimo do elemento ISONOMIA (igualdade entre as partes), fazendo com que a missão do Direito fosse trazer de volta o equilíbrio da balança (de rectum, ou seja, com o fiel da balança no meio), restabelecendo a HARMONIA e, consequentemente, alcançando a Justiça.
Na Idade Média, a noção de Justiça, propagada pela Igreja Católica, era similar à defendida pela Justiça bíblica, ou seja, dar aos outros o que lhes é devido (“dar a cada um o que é seu”) (RETRIBUIÇÃO/COMPENSAÇÃO). Mas ainda nesse tempo não existiam limites às práticas cruéis utilizadas como punição, que além de servir como apaziguadores do desejo de vingança, deviam servir como medida didática inibidora dos futuros atos criminosos.

JUSTIÇA = COMPENSAÇÃO/RETRIBUIÇÃO DEVIDA + HARMONIA + BEM COMUM + SABEDORIA/EQUIDADE + ISONOMIA + DIGNIDADE

Por fim, nas idades Modernas e Contemporânea a ideia de DIGNIDADE (entendida como a condição mínima a que se permite que um ser humano possa ser exposto) é incluída como elemento essencial à Justiça. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, que traz também em seu bojo a ideia de Justiça Social, buscando, dessa forma, readaptar o sentido da ISONOMIA, sempre de forma a manter a harmonia entre os valores defendidos.

Dessa forma, com base nos elementos até agora encontrados, poderíamos dizer que a Justiça seria um valor ou princípio que garantiria a proteção dos valores relativos a COMPENSAÇÃO/RETRIBUIÇÃO DEVIDA, HARMONIA, BEM COMUM, SABEDORIA/EQUIDADE, ISONOMIA e DIGNIDADE.

Contudo, é a partir do século XIX que ocorreriam mudanças mais significativas na interpretação desses conceitos.

SÉC XIX – 1801-1900

O século XIX viu o advento do poder político da burguesia, após pouco mais de 10 anos do início de uma revolução que marcou, com resultados bastante controversos, a virada de uma era (Revolução Francesa – 1789-1799 - marca o início da Idade Contemporânea).
Viu também a revolução técnico-científica empreendida pela burguesia, ávida por entender as leis da Natureza e o funcionamento do mundo, de forma a melhor tirar proveito dos acertos propiciados por estas técnicas.
A filosofia, influenciada por este novo paradigma, desenvolve métodos mais exatos de verificação da realidade. Surge o materialismo dialético, método científico de análise da realidade, que afirma que os valores subjetivos (bom, mal, certo, errado) são resultado da posição que o indivíduo ocupa na luta de classes, que são por sua vez condicionadas pela forma como a sociedade se organiza para produzir os bens e serviços necessários à manutenção do modo de viver desta sociedade.
Surge o Positivismo, de cunho mais conservador, e, voltado para o Direito, surge o Positivismo Jurídico (método científico que tem como objeto de estudo o Direito, tomado no sentido de norma jurídica), tendo como maior representante o jurista austríaco/americano Hans Kelsen (autor da Teoria Pura do Direito), que afirma que Justiça é o que decorre da aplicação da norma jurídica, deixando questões como legitimidade e outras análises valorativas para outras Ciências Sociais, direcionando a Ciência do Direito para o estudo da norma jurídica (assim considerando aquilo que foi positivado pelas instituições competentes à elaboração do Direito, em suas relações hierárquicas e temporais).
Por final, a tendência historicista do séc XIX relativizou as concepções outrora absolutas sobre Justiça, Direito, Ética, certo, errado, etc., em favor de uma análise menos inquisidora sobre os hábitos dos indivíduos de outras épocas, cuja concepção de certo e errado, segundo esse pensamento, estava condicionada pelas suas circunstâncias históricas.
Dessa forma, o conceito de Justiça, bem como dos valores e princípios a ele relacionados, passam a ser tomados como destituídos de qualquer significado intrínseco, passando a ser considerados como resultado do fenômeno social em que o indivíduo e sua comunidade estão inseridos.
Isso colabora de um lado a tese da positivação do Direito, no sentido da necessidade de deixar claro quais são os Direitos que regem as relações na comunidade, passando assim o Direito a ser um valor concreto, mensurável, e aceito democraticamente pela maioria dos membros da comunidade.
Contudo, sabemos que essa concepção só estaria devidamente legitimada em um regime verdadeiramente democrático, cujas leis derivassem de fato da vontade popular, e não como ocorre comumente, em que a produção do Direito Positivo é controlado por esquemas de manipulação das ferramentas capazes de criar uma falsa noção de legitimidade no ato de concessão de poder aos nossos representantes.
A positivação da idéia de Justiça

No séc. XX, após duas Guerras Mundiais, consideradas as mais sangrentas da história da humanidade, as nações decidem em âmbito supranacional positivar o valor Justiça, em texto de sua Declaração do pós-guerra:

Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948

"Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (...)
Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.
1. Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
2. Toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.
3. Toda pessoa que trabalhe tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social."

O texto dessa Declaração, por sua vez fortemente inspirado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada à época da Revolução Francesa, inspirou a elaboração de Constituições Nacionais, entre elas a Constituição Brasileira de 1988:

"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL."
"Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; (...)"
"Art. 5º - XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;"

A referência à EQUIDADE com vistas ao BEM COMUM pode ser encontrada também na nossa Lei de Introdução ao Código Civil:

"Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum."

Dessa forma, as leis máximas orientadoras dos Estados modernos orientam-se pelo princípio da busca pela Justiça.
Contudo, o que se vê na prática parece não refletir as máximas pregadas pela lei.
Hoje em dia, em que predomina uma sensação de descrédito na Justiça oferecida pelo Estado, é comum que voltemos a ouvir falar sobre “fazer justiça com as próprias mãos”. O apoio a chacinas e a grupos de extermínio que atuam nos bairros mais pobres vem desse sentimento de vingança imediata, numa sociedade complexa “que já perdeu os rituais e as instituições das sociedades primitivas e que não conta com seus meios de controle social nem mesmo com seus meios informais de negociação.”
Assim, talvez nos reste admitir que a busca por Justiça não implique o estudo restrito do ordenamento jurídico, mas talvez de matérias mais atinentes ao ser humano, como filosofia, sociologia, psicologia, antropologia, etc.
E restaria assim ao operador do Direito a missão de dar ao vocábulo Justiça prescrito pela lei a devida interpretação na aplicação do Direito às demandas concretas da sociedade.

REFLEXÕES E DIVAGAÇÕES - A morte do artista

"Quem matou o artista? Há assim várias hipóteses. E também vários suspeitos. Foi o martelo do operário? Ou foi apenas um acidente de trabalho? Foi a caneta do burocrata? Ou se intoxicou com a tinta dos carimbos? Ou foi o giz da sala de aula? Foi uma bala perdida? Ou ela era direcionada? Ou talvez tenha morrido de fome, para aumentar os lucros dos investidores?


O artista morreu, mas se recusa a ser enterrado
Levanta-se do caixão e corre desatinado
Nu pelos campos
Causando espanto entre as velhas senhoras da sociedade
As pessoas se espantam e gritam
E os senhores engravatados se reúnem:
O artista só faz perturbar a ordem!
E isso não é bom para os negócios
Quem vai conseguir enterrar o artista
e conseguir enfim estabelecer a ordem no mundo?

O artista tem o peito aberto
Por onde escorrem-lhe as entranhas
É agora um zumbi, um verme, um corvo
Transformando o podre em nova vida
E produz mau cheiro
Chafurda a morte
Tem um vômito ácido
Mas toma um Sonrisal® e segue em frente


Já não tem fígado ou pulmão
E o coração está em pedaços
E ainda assim, de suas tripas espalhadas,
Constrói sua obra-prima"

(Paulo A.C.B.Jr)