11 de agosto de 2012

Laicismo estatal e crucifixos nos órgãos públicos



Após várias décadas de um laicismo formal declarado pela maior parte dos países do Ocidente (ainda que em diferentes épocas e aprofundamentos – na França desde a Revolução Francesa enquanto na Argentina havia a exigência de um presidente católico até os anos 90), um movimento laicista novo, de militância mais incisiva, tem ganhado espaço nos debates públicos nos últimos anos. Aparentemente duas circunstâncias principais parecem ter alimentado essa nova discussão: na Europa, uma direita com pretensões mais ou menos liberais (mas que ocultariam uma certa tendência islamofóbica), e, na América Latina, grupos de centro-esquerda de formação marxista, agora no governo, apoiados por movimentos historicamente escorraçados pela tradição religiosa (feministas, pró-aborto, homossexuais, etc.).

Lembremos que há alguns anos veio à tona a discussão sobre a proibição do uso do véu islâmico nas escolas francesas (na verdade a medida diz respeito às vestimentas religiosas de todas as confissões, mas é notório que o alvo principal seria a população islâmica), medida essa em relação a qual me manifestei contrariamente, sob o argumento de que o Estado deve ser laico, mas a população que utiliza seus serviços não.

A situação para o caso dos crucifixos em órgãos públicos parece seguir lógica semelhante, tendo em vista a laicidade do Estado, não obstante o fato de que, caso houvesse algum estudo que apontasse que a permanência dos crucifixos garantisse maior “justiça” nos julgamentos e atos administrativos, este poderia ser um argumento irresistível a seu favor. Contudo, é sabido que certas tradições têm mais utilidade na aparência de moralidade (e manutenção de uma certa "ordem") do que garantir propriamente a moralidade. Por outro lado, é de se levar em conta que a retirada do crucifixo também não significaria diretamente qualquer garantia de mudança ideológica dos magistrados, assumindo a própria retirada, ao menos em um primeiro momento, um caráter mais simbólico do que prático. Não obstante, argumentos a favor da manutenção dos crucifixos poderiam levar em conta uma possível manutenção da paz social (havendo risco de certa insurgência popular diante de uma atitude que pode não ser muito bem compreendida), a própria vontade popular, tomada em um sentido democrático plebiscitário (vontade da maioria), e mesmo a manutenção de uma tradição histórico-cultural, considerada como patrimônio cultural a ser protegido pelo Estado (esta última tem merecido maior destaque na argumentação jurídica favorável à manutenção). Inevitável, contudo, não associar o peso do símbolo cristão, por exemplo, diante de uma possível decisão a favor do aborto, ou no interesse dos grupos alijados pelo poder religioso. Para estes, o símbolo poderia representar uma antecipada tomada de posição por parte do Estado, o que implicaria certa parcialidade diante de questões que possam vir a contrariar determinada moral religiosa. E essa “antecipação de posição”, mormente por vincular-se a valores explicitamente não-leigos, contrariaria a isenção estatal almejada pela cultura liberal e laica na qual se baseou nossos ideais jurídicos republicanos.

Em relação à decisão do Conselho Nacional de Justiça a respeito da possibilidade de manutenção dos crucifixos, creio que a defesa do princípio federalista pode de fato implicar uma certa autonomia das instituições estaduais em relação a estas questões (nos termos de suas próprias instituições democráticas). Afinal, o CNJ se posicionou no sentido de que a manutenção do crucifixo não fere a Constituição Federal, não excluindo a priori aos Estados da Federação a análise de suas situações particulares (como foi inclusive o caso do Acre ao não inserir qualquer expressão religiosa no preâmbulo de sua Constituição Estadual).

Por fim, importante que tenhamos em conta que questões como essa, por mais que possam parecer frutos de mentes atéias "intolerantes", deveriam servir para fomentar debates também sobre outras questões relevantes, como o porquê de seguir certa tradição (que nem sequer conhecemos direito a origem e a história), simplesmente porque "sempre foi assim". Não podemos esquecer, ainda, que todo símbolo carrega consigo uma carga ideológica que extrapola na maior parte das vezes seu sentido original, e que serve para incentivar que se mantenha intocada uma certa ordem das coisas. Veja-se, por exemplo, como o Cristianismo manteve sua carga de dominação mesmo após a queda do Império Romano (que se tornou cristão a partir do século IV), servindo, de certa forma, como um meio de continuação daquele Império. Historicamente temos exemplos de que um símbolo pode não ser tão inocente como querem alguns, principalmente quando é ostentado pelos dominadores, e utilizados mais pra dominar do que para libertar.


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REFLEXÕES E DIVAGAÇÕES - A morte do artista

"Quem matou o artista? Há assim várias hipóteses. E também vários suspeitos. Foi o martelo do operário? Ou foi apenas um acidente de trabalho? Foi a caneta do burocrata? Ou se intoxicou com a tinta dos carimbos? Ou foi o giz da sala de aula? Foi uma bala perdida? Ou ela era direcionada? Ou talvez tenha morrido de fome, para aumentar os lucros dos investidores?


O artista morreu, mas se recusa a ser enterrado
Levanta-se do caixão e corre desatinado
Nu pelos campos
Causando espanto entre as velhas senhoras da sociedade
As pessoas se espantam e gritam
E os senhores engravatados se reúnem:
O artista só faz perturbar a ordem!
E isso não é bom para os negócios
Quem vai conseguir enterrar o artista
e conseguir enfim estabelecer a ordem no mundo?

O artista tem o peito aberto
Por onde escorrem-lhe as entranhas
É agora um zumbi, um verme, um corvo
Transformando o podre em nova vida
E produz mau cheiro
Chafurda a morte
Tem um vômito ácido
Mas toma um Sonrisal® e segue em frente


Já não tem fígado ou pulmão
E o coração está em pedaços
E ainda assim, de suas tripas espalhadas,
Constrói sua obra-prima"

(Paulo A.C.B.Jr)