Após várias décadas de um
laicismo formal declarado pela maior parte dos países do Ocidente (ainda que em
diferentes épocas e aprofundamentos – na França desde a Revolução Francesa
enquanto na Argentina havia a exigência de um presidente católico até os anos
90), um movimento laicista novo, de militância mais incisiva, tem ganhado
espaço nos debates públicos nos últimos anos. Aparentemente duas circunstâncias
principais parecem ter alimentado essa nova discussão: na Europa, uma direita
com pretensões mais ou menos liberais (mas que ocultariam uma certa tendência
islamofóbica), e, na América Latina, grupos de centro-esquerda de formação
marxista, agora no governo, apoiados por
movimentos historicamente escorraçados pela tradição religiosa (feministas,
pró-aborto, homossexuais, etc.).
Lembremos que há alguns anos veio
à tona a discussão sobre a proibição do uso do véu islâmico nas escolas francesas
(na verdade a medida diz respeito às vestimentas religiosas de todas as confissões,
mas é notório que o alvo principal seria a população islâmica), medida essa em
relação a qual me manifestei contrariamente, sob o argumento de que o Estado
deve ser laico, mas a população que utiliza seus serviços não.
A situação para o caso dos
crucifixos em órgãos públicos parece seguir lógica semelhante, tendo em vista a
laicidade do Estado, não obstante o fato de que, caso houvesse algum estudo que
apontasse que a permanência dos crucifixos garantisse maior “justiça” nos
julgamentos e atos administrativos, este poderia ser um argumento irresistível
a seu favor. Contudo, é sabido que certas tradições têm mais utilidade na aparência
de moralidade (e manutenção de uma certa "ordem") do que garantir propriamente
a moralidade. Por outro lado, é de se levar em conta que a retirada do crucifixo
também não significaria diretamente qualquer garantia de mudança ideológica dos
magistrados, assumindo a própria retirada, ao menos em um primeiro momento, um
caráter mais simbólico do que prático. Não obstante, argumentos a favor
da manutenção dos crucifixos poderiam levar em conta uma possível manutenção da
paz social (havendo risco de certa insurgência popular diante de uma atitude
que pode não ser muito bem compreendida), a própria vontade popular, tomada em
um sentido democrático plebiscitário (vontade da maioria), e mesmo a manutenção
de uma tradição histórico-cultural, considerada como patrimônio cultural a ser
protegido pelo Estado (esta última tem merecido maior destaque na argumentação jurídica
favorável à manutenção). Inevitável, contudo, não associar o peso do símbolo cristão,
por exemplo, diante de uma possível decisão a favor do aborto, ou no interesse
dos grupos alijados pelo poder religioso. Para estes, o símbolo poderia representar uma antecipada tomada de posição por parte do Estado, o que implicaria certa parcialidade
diante de questões que possam vir a contrariar determinada moral religiosa. E essa
“antecipação de posição”, mormente por vincular-se a valores explicitamente
não-leigos, contrariaria a isenção estatal almejada pela cultura liberal e
laica na qual se baseou nossos ideais jurídicos republicanos.
Em relação à decisão do Conselho
Nacional de Justiça a respeito da possibilidade de manutenção dos crucifixos,
creio que a defesa do princípio federalista pode de fato implicar uma certa
autonomia das instituições estaduais em relação a estas questões (nos termos de
suas próprias instituições democráticas). Afinal, o CNJ se posicionou no
sentido de que a manutenção do crucifixo não fere a Constituição Federal, não
excluindo a priori aos Estados da Federação
a análise de suas situações particulares (como foi inclusive o caso do Acre ao
não inserir qualquer expressão religiosa no preâmbulo de sua Constituição Estadual).
Por fim, importante que tenhamos
em conta que questões como essa, por mais que possam parecer frutos de mentes
atéias "intolerantes", deveriam servir para fomentar debates também
sobre outras questões relevantes, como o porquê de seguir certa tradição (que
nem sequer conhecemos direito a origem e a história), simplesmente porque
"sempre foi assim". Não podemos esquecer, ainda, que todo símbolo
carrega consigo uma carga ideológica que extrapola na maior parte das vezes seu
sentido original, e que serve para incentivar que se mantenha intocada uma
certa ordem das coisas. Veja-se, por exemplo, como o Cristianismo manteve sua
carga de dominação mesmo após a queda do Império Romano (que se tornou cristão
a partir do século IV), servindo, de certa forma, como um meio de continuação
daquele Império. Historicamente temos exemplos de que um símbolo pode não ser
tão inocente como querem alguns, principalmente quando é ostentado pelos
dominadores, e utilizados mais pra dominar do que para libertar.
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